quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

FLUIR

Que coragem a sua
Ficando ao meu lado
Sem estar ao lado.
Não posso olhar nos seus olhos
Agradecer, dizer algo,
Que não se encaram mais;
Não traduzem no olhar:
- Nada de traduções, rapaz.
Repete o velho sem esperança
Sabendo que o tempo não faz alianças

O sentido que você quer dar
Às coisas que não teem sentido
Sempre escapará por um vazio
E você ao lado
Esperando o destino virar a cara
Triscar a faísca, deitar sorriso.
Tosquiaram as ovelhas:
Humilhadas no pasto
Uma acha a outra estranha
Por falta de espelho.

Você ao lado pensa  entender
Sabendo coisas pela metade
Fazendo idéia de tudo
Sem ter um sentido claro
Sem saber o motivo certo.
Coisas acontecem de verdade
Mas é lá fora,  distante.
Então,  deixe que rolem
São apenas coisas, copo ao meio.
Delas você está cheio.

Você atualiza cada dia
O que estava distante.
Aquilo que não tinha sentido
Agora surge doença.
As pessoas não entendem
Que sofrem desde sempre.
Não entender fazia não sofrer
Então: salve a ignorância
Que nos mantém distantes
Da inocência cruel das crianças

Fluo sorrindo pela vida.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

CIRCO

CIRCO

No tempo dos dias tristes
Rio dos meus dias todos.
Rio da melancolia do hoje
E das que mais virão.
Ouço tiros despóticos
Debaixo da minha janela:
Noite de crime e notícia.
Realizamos o crime
Que confecciona a notícia
Amanhã saem à cata da notícia
E trarão crime
Não rio e não durmo.

Encharcado de manchetes
Pulo dentro da  noite
Camelôs tremendo de frio
Crianças e homens e mulheres
E  velhos e bêbados e tristes
E todas as outras espécies
Param e apreciam
Pastéis na gordura quente
Através do vidro do quiosque
Na Central do Brasil:
Contempla os pastéis, faminto!
Contempla a riqueza
Longe das tuas mãos e boca.
Contemplo a riqueza
Que contempla os pastéis
Sentindo vontade de sentir fome
Uma fome tão enorme de grande
Que um pastel a sustente de pé.
Medonha!

Trabalhadores de pés acelerados
De medo correm entre as barracas
Mergulham nos ônibus quando em quando
Que mergulham nos subúrbios
Ao Deus dará.
O medo abocanha calcanhares
Operários que pulam
(pastéis na gordura quente)

Mil milhões de peças de reposição
No parque industrial do crime.
Luminosos de Coca-Cola extrapolam
A sede nas gargantas podres
Que anseiam odres
De qualquer satisfação
Pernas de nenhuma estirpe
Cinturas rebolam doentes
Os desejos de todas as gentes:
Vem, mulher descomposta. Atira
Em meus braços ombros descarnados.
Corre, esquecido pela humanidade,
Aninha no meu ombro de touro
Todas as palavras que ninguém ouve.
No relento de 16 graus
A mulher dorme abraçada ao cão.
O mais franco postal do rio de Janeiro
À espera que dele alguém lance mão

Desamparados se amparam
Acendendo fogueiras com os restos
Da sociedade que associa em divãs.
Amargurada pela tristeza
A Verdade da urbe ruge
Selvagerias no século XX

Meninos que não crescerão nunca
Apreciam a evolução dos pastéis
No circo da fome. E riem.
Maravilhados pela mágica
Da massa branca, comentam,
Apontam dedos sujos,
Riem do pastel imundo
Que para eles já é brinquedo
Impossível Na vitrine do magazine.
Sonharão com os pastéis pulando,
Evoluindo na gordura,  mergulhando
Boiando tostados
Até que a escumadeira
Encerre a brincadeira
E se dissolvam as crianças
Em bando e em panças
Pelas goelas da Central

MILAGRE

MILAGRE

Escavo o silencio para enterrar
As palavras que não mais a mim pertencem.
Procuro o mais quieto que há em mim
Para gritar o que diria a ti
De forma que não ouças,
Que fique entre mim e o nada
Flutuando tristes e pesadas
As palavras a ti dedicadas.

Procuro o vácuo que nada propaga.

Cavo e escalavro os dedos
Na dura superfície da ausência.
À medida que me aprofundo,
Em que me alheio do mundo
Para não perder o amor que vivi,
Mais difíceis ficam as palavras.
Retorno, então, à jornada de cavar
Para esconder o que de mim salta.

Aliviar a falta do que em mim falta.

Quando vou me dando por satisfeito,
Chegando lá, aonde não existo,
Deparo-me com a pedra inexpugnável
Lacrando minha passagem
Para qualquer felicidade.
Sem mais poder, “preciso de um milagre
Remove a minha pedra¹”
Afasta, de mim, essa saudade.

¹ - RESSUSCITA-ME (Aline Barros)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

GÊMEOS

Pouco conhecera
Muito amara
Nas distrações
Adivinhava-a

Lutou por merecê-la
Amarras
Outras apareceram
Nem nada

Passou o tempo
Esperanto
Os olhos amando
Um encanto

Sem luzes, fidalguia
Era só um homem
Guardando os dias
Nem sabe aonde

Tornou-se deusa
De imaginada
Ele, fera presa
Ao que criara

Os seus caminhos
Foram traçando
Um labirinto
De  enganos

Por fim, o momento
Do adeus  desejado
Ao sofrimento
Que era amparo

Frente a frente
Com o destino
Viu-se, temente
A sós consigo

O  mistério
Revelara-se
Seu ministério
Em si findava

Sem a conhecer
Imaginara
Amor de doer
Uma clava



Ela, sem saber
O fustigara
Por outro arder
Que não amava

Ele sem prumo
Ela dissecada
Dois assuntos
Sem palavra

Muito dele
Ela calada
Ela era ele
Ele era nada

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

OUTRO


Não sei sentir. As alegrias
Em mim ricocheteiam.
A racionalidade que orgulhava
Exasperou os sentimentos
A falta de um abraço quente
Calor puramente humano
Congelou  o que fervera

Não tenho tempo para amar.
O mundo dos homens flui
Para dentro de mim
Arrancando lascas, nacos
Na medida em que passa
Resfolegante pelos sentidos
E, em muito, pelos ouvidos.

Só consigo ser no ideal
Não comporto o real
Sou o que faço parecer
Olhando com descaso
Para o que pareço
Enquanto  desconheço
O visto no espelho.

Querendo entender a vida
Compreendi tudo
Menos o que era humano
Menos o que era quente
Injusto, porém quente:
Optei por ser morno
Imperfectivo, mediano

Viver em primeira pessoa
Foi deveras enfadonho
Ser o justo, a lança
Era negar ar à idéia
Privar o pensar do som
Quando sou só palavra
Linguagem usando corpo

o que digo não faz sentido
Não sou quem traduzo
Não entendo o idioma
A vida, amigo, é literatura
Circunstância e metáfora
Quem nas brechas se declara
É outro: quem  escreve a carta.

ALOPÁTICO

ALOPÁTICO

O calor atiça a libido
Dos bichos 
O que chamas amor
É pura química
Encontro de humores

Todos sofrem um pouco
Todos riem
O tamanho do amor
Mede-se na despedida
Pelo que dele resiste

As cores que não vias
Palavras ditas
Tudo tem seu preço
Sua valia
Petisca quem arrisca

Tomei um pouco de tudo
Para mudar o mundo
As manhãs sempre vinham
Que a noite urge
e o viver é um feito particular

amanhã te contarei de mim
talvez rias
mas será apenas historia
o mundo não mudou
pelas drágeas

o que chamas amor
minha querida
revelou-se obra da química
dizem os cientistas
que não leram poesia.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

ABASTECIMENTO


ABASTECIMENTO

No caminho para minha casa
passa boi, passa boiada
passam soldados, carros e lotação
passam mendigos, alfaiates
passam padres em tentação
passam prostitutas e elefantes
quando chega o circo na cidade
cheia de risos de palhaços sem solução.

No caminho para o trabalho
passa boi, passa boiada
auxiliares d'almoxarifado
engenheiros, estudantes
gerentes de bando, chefes de repartição
passam aposentados aposentados
comunistas remunerados
e muitos erros de fabricação
passa a moça da bomboniere
magra magra sem sonho de valsa
que dança com os homens
o tango de sua solidão
capitalistas descapitalizados
preocupados por vocação
tem o moço loiro que é padeiro
que faz bolos com paixão.

No caminho da escola
passa tanta gente, tanta gente
que é impossível dizer quem são.
Seus passos são tão urgentes
que se chamam apenas multidão.
Passa o trem que não tem hora
passam estudantes cheios de ilusão
de tanger essa boiada
para onde haja forragem farta
e um córrego de libertação.

Nos caminhos por onde ando
passa boi, passa boiada
passo eu em disparada
passo eu junto a manada
ruminando paz e pão.